Ao longo das últimas décadas, uma imagem se repetiu em reportagens sobre a educação brasileira: crianças e adolescentes com mais de dez anos têm dificuldades para ler e compreender textos simples. As avaliações em larga escala já mapeiam a compreensão da leitura e da escrita dos estudantes e contribuem na criação de políticas que revertam o cenário. Mas outra habilidade vem ganhando espaço e fortalecendo as políticas públicas de alfabetização: a fluência leitora.
Desde 2019, os estados de Amapá, Espírito Santo, Pernambuco e Sergipe atuam em regime de colaboração com seus municípios para avaliar também essa dimensão da linguagem integrando a Parceria pela Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC). Nos anos seguintes, Alagoas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Piauí, Goiás e Rio Grande do Sul também passaram a fazer parte do grupo e adotaram a avaliação, e São Paulo aplicou o teste de fluência em 2021 e 2022 com apoio de organizações do terceiro setor.
“A avaliação de fluência avalia a oralidade, que é uma dimensão que acaba secundarizada ou mesmo não sendo vista pelas avaliações tradicionais, que têm como foco a leitura e a escrita”, explica Hylo Leal, coordenador de avaliação da Associação Bem Comum, uma das organizações parceiras na aplicação do teste. A fluência no ciclo de alfabetização é medida pela capacidade de um estudante ler, em um minuto, 65 palavras ou mais de um texto simples com uma taxa de precisão de 90% ou mais. “Esse seria o ideal para uma criança terminar o 2º ano do Ensino Fundamental como leitora fluente”, diz. Quem já lê 11 palavras ou mais e pelo menos 6 pseudopalavras por minuto pode ser considerado leitor iniciante. Quem lê até 10 palavras corretamente é pré-leitor.
Os critérios de fluência foram estabelecidos pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd) da Universidade Federal de Juiz de Fora, a partir de estudos realizados em parceria com o Ministério da Educação (MEC) em 2017. O teste segue uma metodologia simples: o professor, com apoio de um aplicativo, grava áudios do aluno lendo três itens com graus diferentes de desafios. O primeiro item consiste numa cartela de palavras avulsas. O segundo em uma cartela de pseudopalavras (para garantir que o aluno não está lendo por memorização) e, por fim, é desafiado com um pequeno texto narrativo de 100 palavras.
“Ao gravar o aluno, o professor tem a chance de observar a leitura e perceber que ele não está alfabetizado. Por isso, a avaliação de fluência gera uma mobilização rápida do professor”, diz Márcia Ferri, gerente de políticas de alfabetização do Instituto Natura, organização que também apoia o projeto. Neste momento, tanto aluno quanto professor podem observar a capacidade de identificar as palavras e, ao mesmo tempo, expressá-las a uma audiência com ritmo, fluência e agilidade. “A fluência é importante porque quando há uma grande pausa entre as palavras lidas, esquecemos as palavras anteriores, não sendo possível compreender o texto”, aponta.
Os áudios gravados pelo professor em sala são corrigidos por um time de docentes treinados para ação e os resultados são sistematizados em uma plataforma que permite ter visibilidade em três níveis de informação: alunos, escolas e redes de ensino. Além disso, é realizada a sensibilização para que a secretaria se aproprie dos resultados: eles podem ser revertidos em práticas pedagógicas e se conectar com outras ações da rede, como as formações e materiais didáticos.
Diferente das avaliações em larga escala, que apresentam um retrato do ano anterior, a avaliação de fluência tem permitido um diagnóstico rápido, em cerca de um mês. “Quanto antes o professor, o diretor e o secretário de educação tiverem o panorama dos desafios, mais tempo têm para se engajarem na alfabetização das crianças na idade adequada”, aponta Hylo. Apesar de sua importância e de estar alinhada às matrizes de competências estabelecidas nacionalmente, a avaliação de fluência não substitui as avaliações tradicionais, mas é complementar.
Dados compartilhados, políticas fortalecidas
Para mapear o nível de fluência leitora dos alunos, 11 estados estão trabalhando em regime de colaboração com seus municípios e em parceria com a Associação Bem Comum, Instituto Natura e Fundação Lemann aplicando o teste de fluência idealizado pelo CAEd. A adesão dos municípios a iniciativa é alta e quase todos participam.
A Parceria pela Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC) é inspirada no Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC) do Ceará, referência nacional de trabalho conjunto entre Estados e municípios para erradicar o analfabetismo. Com o PAIC, o número de municípios cearenses com bons resultados na área saltou de 14 em 2007 para 141 em 2010. Além disso, o Estado bateu, em 2011, a meta 5 do Plano Nacional de Educação, alfabetizando todas as crianças até os oito anos de idade.
Com o apoio da PARC, os estados desenvolvem sua própria política de alfabetização. Para respeitar as características regionais, cada Estado deu um nome específico ao programa, como o Alfabetiza MT ou o AlfaMais Goiás. “A secretaria é protagonista nas ações. O papel do terceiro setor é apoiar no desenho das políticas e no desdobramento das estratégias de implementação. Ajudamos com apoio técnico, instrumentos, intersecção com o CAEd e, em alguns momentos, com articulação e alinhamento”, explica a gerente de políticas do Instituto Natura.
Esse modelo tem três pilares. Ele garante o compartilhamento dos dados entre gestores públicos, o alinhamento das políticas públicas dentro do território e o financiamento das ações. “Também há uma quebra de paradigma. O estudante deixa de ser visto como do Estado ou do município e passa a ser visto como do território”, diz Márcia.
Por ora, os resultados de fluência mostram um Brasil que foi impactado pela pandemia e tem resultados piores em 2021 do que teve em 2019. Os números de setembro de 2019 mostraram que 54% dos alunos do 2º ano eram pré-leitores, 26% de iniciantes e 10% fluentes no período da avaliação. Na medição de setembro de 2021, o número de pré-leitores subiu para 72%, enquanto 20% eram considerados iniciantes e 8% fluentes. Em 2022, a medição foi antecipada para abril, para que redes e professores pudessem ter uma avaliação diagnóstica já no início do ano. Neste cenário, 81% eram pré-leitores, 17% iniciantes e 2% fluentes. Mas, como as aulas começam em fevereiro, em abril as crianças ainda estão iniciando o 2º ano e, por isso, os resultados não são equiparáveis ao dos anos anteriores.
Em novembro e primeiros dias de dezembro de 2022, uma nova avaliação foi aplicada com os estudantes do 2º ano. “A expectativa é que os resultados sejam melhores, já que a avaliação do final de ano terá uma compatibilidade maior com as edições de 2019 e 2021. Além disso, tivemos um ano letivo completo depois da pandemia”, pondera Hylo. Os dados nacionais da última avaliação de fluência realizada no último bimestre letivo de 2022 serão divulgados em janeiro.
Como próximos passos, o grupo testa como diminuir o tempo de devolutiva da avaliação com a preparação dos professores que estão em sala com os alunos, para que eles, além de aplicarem as avaliações, também as corrijam. “Assim, o professor tem um retorno mais rápido dos resultados e podem se replanejar pedagogicamente para intervir já no dia seguinte”, conta Hylo. A ideia passou por um piloto em setembro deste ano com Amapá, Mato Grosso e Alagoas: os professores participaram de uma formação para aplicar e corrigir os testes. “O que estamos analisando agora é o grau de fidedignidade desses resultados que foram aferidos pelos professores”. Para 2023, o investimento na formação dos docentes deve continuar, já que acelerar a correção também permitirá que as avaliações possam acontecer mais vezes ao ano e com maior protagonismo dos professores.
Fonte: Portal do Movimento pela Base